PAIXÃO DADIVOSA
Artigo do Padre Alfredo Dorea vai ao ar toda quarta-feira no Portal PNotícias
O cheiro de dendê dominava a casa, tal a sua presença em todas as panelas borbulhantes ocupando as quatro bocas do fogão.
A única iguaria livre do azeite de dendê – a histórica frigideira de bacalhau, exibia-se no forno, ornada com generosas rodelas de cebola e pimentão.
Porções iam e vinham, nas mãos adolescentes, de casa a casa pelas ruas da Vileta, Barreiros e as Sete Sessões: vatapá para dona Luzia e suas cinco filhas; caruru para Carminha e Yayá, sua mãe. Arroz somente o de casa, porque cada família fazia o próprio, com leite de côco espremido à mão. As moquecas variavam: dona Miminha mandou-nos de siri mole; seu Vicente, de sururu e a nossa foi de olho de boi fresquinho, pescado por Nenga, na praia da Boa Viagem. O efó, de língua de vaca, sempre foi a especialidade de Mocinha e por suas condições dona Valdice, era sempre a única da rua que preparava camarão pistola, que nunca alcançava as crianças. Em nossa casa a miraguaia já dormia de molho, coberta com farinha de guerra, dessalgando para o almoço do dia seguinte e esse cabia exclusivamente a meu pai preparar. Tão somente o feijão de leite ele delegava à nossa mãe, sem prescindir da sua supervisão.
Vinho abundava em todas as mesas – tinto, barato, popular e doce. Mesmo quem não era chegado a bebida, na sexta feira da Paixão tomava invariavelmente e sem qualquer escrúpulo, uma generosa dose de vinho – “o sangue de Cristo”.
Antes do almoço, a mesa farta testemunhava uma sessão do beija mãos e pedido de benção ao meu velho pai, que já meio embriagado misturava o emocionado “Deus lhe abençoe” com soluços de um choro compulsivo que prometia não fenecer.
Na véspera nossa avó, em sua visita anual, já comparecera com as invariáveis balas de genipapo, enroladas em papel manteiga e compradas no viaduto da Sé, antes de descer Ladeira da praça, a caminho do terminal da Barroquinha. Também ela nos abençoava (em resposta ao nosso pedido – este feito de joelhos), brindando-nos sempre com uma cédula de mil cruzeiros. Era a única eufórica alegria permitida para aquela semana de recolhimento.
Arlindinha repetia pacientemente, como se pela primeira vez, a história que nos contava a cada ano:
“No tempo da escravidão, aos nossos ancestrais era negada a alimentação básica: passavam fome e trabalhavam muito, todos os dias, sem descanso, sob ameaças e punições. A sexta feira da Paixão era o único dia do ano no qual os senhores e senhoras brancos liberavam os escravos do trabalho e das restrições de comida. Era o dia de “praticar a caridade”! Sempre foi assim, para nós negros e negras, o dia da abundância, de temperar com saudade as comidas africanas e garantir o pão em todas as mesas, para que ninguém ficasse sem
se alimentar. Nenhum pedido de ‘uma esmola pelo amor de Deus’ – à nossa porta – poderia ter como resposta o tradicional ‘-Deus lhe favoreça’. No dia da Paixão de Jesus Cristo, ninguém haveria de passar fome. Comer muito e todas as iguarias que nos unem à mãe África sempre foi a melhor forma de celebrar, em Salvador, a Sexta Feira Santa, dia da Paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Sabedoria de Vó marcam-nos eternamente, por sua singeleza, sabedoria e profundidade.
Feliz Páscoa !
* Padre Alfredo Dorea (@padre.alfredo) é um anglicano amante da vida, da solidariedade e da justiça social. Com os movimentos populares, busca superar todo preconceito e discriminação. Gosta de escrever e se comunicar.